Intern
Lehrstuhl für Europäische Ethnologie / Empirische  Kulturwissenschaft

O SONHO DA FLOR

Fernanda Haskel with Echtes Johanniskraut

Esta é a história de uma planta que sonha nas bordas dos canteiros.

Sonha e faz sonhar.  Os sonhos são tecnologias utilizadas pelas plantas e seu povo para navegar entre mundos[1].
 

 

 

Depois de ouvir seu nome pela primeira vez, sementes de sonhos germinam com um balão azul que sobrevoa uma terra sem civilização. 

Quando acorda, seu nome, em alemão, floresce no coração: Johanniskraut[2].

Com o encantamento — a pedagogia das plantas — , é adotada.
Sente-se cuidada e guiada.  Semeia-a e é semeada pela Erva de São João. 

Navegando entre mundos, repousa sonhando servir à flor: faz-se disponível para os feitiços de Johanniskraut.

O corpo poroso, crivado de buracos como as folhas da Erva de São João, é polinizado pelo pólen brilhante das pétalas amarelas-ensolaradas.
A seiva e o sangue se fundem, raízes emaranhadas penetram na carne.
Juntas, cultivam os jardins da memória e as memórias do jardim.

Hipnotizada, faz-se  jardim de flor: corpo-território onde brotam os sonhos na terra.  O corpo não é só seu, torna-se corpo compartilhado com a Erva de São João,  por quem se apaixonou.

Ocupa-se e deixa ocupar-se com outros modos de viver.

Rendida aos feitiços das plantas, seus sonhos se transformam em sonhos de flor. A Erva de São João é uma planta mágica que ajuda em momentos de transições e perdas. 

O amor é campo de encontro, o comum nas diferenças de suas existências.

 

Entre castelos e jardins, sinos e sirenes, Johanniskraut floresce no solstício de verão,  com o auge do sol — o sonho da flor. Por isso ela parece com ele, seus filamentos dourados são raios de sol trazendo luz à terra.

Navegando entre mundos, a erva de São João vive nas fronteiras do uso médico e mágico — nas encruzilhadas entre superstição e ciência, nas dobras entre laboratório e lenda[3].

Conhecida também por Erva do Sangue de Maria e Erva de Bruxa, é uma planta feiticeira, sábia curandeira, usada em simpatias e remédios.
Muitas mulheres, que reconheciam suas propriedades mágicas,  foram rotuladas como "bruxas" pelas estruturas patriarcais e coloniais de poder.

Ironicamente, registros sugerem o uso da erva para proteção contra bruxas, que tem com as plantas uma longa relação de amizade e parceria[4].

Diz-se que o diabo dicou tão furioso com o poder da Erva de São João, que perfurou suas folhas[5].  A ciência, por sua vez, descobriu que os buracos nas folhas são glândulas vegetais translúcidas, onde se concentram propriedades medicinais.  Planta antidepressiva, logo foi empacotada e disponibilizada nas prateleiras das farmácias e supermercados. 

E o que diriam as folhas?

As plantas não tem o costume de desenhar palavras em pele de papel como nós[6].  Em vez disso, a Erva de São Jõao guarda o que vivencia em 

imagens fragmentadas captadas pelos furos de suas folhas.  Registram a memória do sol tocando a terra, pronta para semear mundos outros.

As folhas mostram os pontos de luz na sombra de seus corpos, onde raios de sol atravessam a pele vegetal. Nota-se sol em luz, som e tom.
O que vemos como luz, seu povo sente como som.

Conversando com a última flor do verão, percebe-se que Johanniskraut é especialista na gramática do cuidado e da grafia dos afetos. Os pontos translúcidos são poros abertos de uma pele trans[7]: janelas de linguagem, portas de passagem, dispositivos de travessia para trans-lucidez do ser[8] .

Sabe-se que os furos nas folhas são mecanismos de transver mundos:

"O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo"[9].

Especialistas em literatura vegetal dizem que as sombras dos furos das folhas mostram poesias criptografadas, um conjunto de notas musicais[10].
O sopro do vento que transpassa os furos das folhas decodifica as partituras vegetais em sussurros de Zauberworte (palavras de encantamento).

Humanos a vêem como planta. Ela se vê como humana[11]
É humana com pele de flor, vestida com saia de folha furada.  

Entre razão e Loucura[12], as folhas contam uma história de cuidado, magia e conexão. O controle dos canteiros cede à insistência de vida, à desobediência das flores. Nas fissuras da norma, rompem a ordem, dissolvem o concreto, sem lugar marcado para florir.

Quando a flor sonha com o sol, pergunta:

Que mundos podem nascer quando ouvimos o que floresce nas margens dos canteiros? Nas margens dos mundos? Nas margens das chamadas civilizações?

Pensando com a terra, ouve-se o som das folhas da planta.

Navegando entre mundos,  a Erva de São João ensina a sonhar na beira dos canteiros[13].


[1]   Para sonhos como tecnologia  ver A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, Bruce Albert e Davi Kopenawa; a obra de Ailton Krenak; e também Pensamentos Ameríndios e Perspectivismo com Eduardo Viveiros de Castro.

 [2] Erva de São João, em Português. St. John 's Wort em Inglês. No Brasil a planta é conhecida como Hypericum, é parente da Artemisia.

 

[3] Nos estudos etnográficos de Johanniskraut em alemão, há uma relação entre o diabo, plantas e bruxas — mulheres que trabalham com as plantas, acudas de terem pacto com o diabo.

[4] Estudos neurobiológicos mostram que a Erva de São João tem efeitos positivos nos tratamentos de depressão, doenças degenerativas do cérebro, casos de demência, e processos de mudanças hormonais, como TPM e menopausa. Mesmo mapeando as intereações bioquímicas e decodificando suas propriedades e componentes, não se sabe exatamente os mecanismos de atuação da Erva de São João. No folclore, diz-se que a planta afasta as bruxas e os maus espíritos, que agitam e perturbam a mente.

[5] Por isso são conhecidas como Hypericum Perfuratum — perfurado em latim. Esses furos mostram quem é Das Echte Johanniskraut, a verdadeira Erva de São João, em alemão.

[6] “Trans” como “o outro lado de". Neste caso, transpassando a lucidez e a ideia da loucura de conversar e trabalhar em parceria com as plantas, como protagonistas das alianças multiespécies.

[7] Translucidez é um modo de operar que transvê a lucidez entre mundos humanos-vegetais e vegetais-humanos. Delirando com as Plantas, pode ser um ensaio sobre a Lucidez Selvagem dos pensamentos da flor, sempre em fragmentos. Translucidez também método entre fotogradia e desenho para fazer os retratos entre mundos: territórios comuns em composição com as diferenças. 

[8] Ver A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, Bruce Albert e Davi Kopenawa.

[9]  No Maior Quintal do Mundo com Manoel de Barros, 1996.

[10] A literatura vegetal é um ramo da Terolinguística, uma ciência inventada para estudar a linguagem e a política selvagem (Ursula K. Le Guin; Donna Haraway; Vinciane Despret).

[11] Perspectivismo e Pensamento Ameríndio (Viveiros de Castro e povos originários brasileiros, como os Guarani, Krenak e Yanomami). Trata-se da torção ontológica de construção de mundo na relação com o outro que se vê humano e não nos vêem como humanos, mas com uma roupa (corpo) diferente. A parceria com as plantas nessa escrita se dá no reconhecimento de que elas são gente.

[12] Ver Michel Foucault e seus estudos sobre relação de poder, razão e loucura.

[13]  Este trabalho está sendo realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, essencial para a realização do período de estudos no exterior, conforme o Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE).